domingo, 24 de julho de 2011

"Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!”

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Uma pessoa grávida de futuro

"Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo - crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro. Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o primeiro esgar da noite que, sim, sim, era funda e faustosa. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras - desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria."

(Clarice Lispector - A Hora da Estrela)

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Direito a explicações

"Quando nos separamos ele chamou-me melga, mas isso é uma palavra emotiva, não acham? Não me parece que se possa chamar melgar quando são só telefonemas, cartas, e-mails e bater à porta. E só apareci no emprego dele duas vezes. Três vezes, se contarmos com a festa de Natal, coisa que não conto, porque ele disse que me levava. Melgar é quando se segue as pessoas nas lojas e nos feriados, e tudo o mais, não é? Pois eu nunca me aproximei de loja nenhuma. Seja como for, não me parecia que fosse melgar quando uma pessoa nos deve uma explicação. Deverem-nos uma explicação é o mesmo que deverem-nos dinheiro, e não se trata apenas de uma nota de cinco libras. Quinhentas ou seiscentas libras no mínimo, e quando a pessoa que as deve anda a evitar-nos, temos de acabar por lhe bater à porta de madrugada, quando sabemos que ela vai lá estar. As pessoas têm reacções sérias quando se trata de quantias dessas. Chamam cobradores, e chegam a partir pernas, mas eu nunca fui tão longe. Revelei algum controlo."

(Nick Hornby - Um Grande Salto)

Como uma inesperada aparição...

"Foi como uma inesperada aparição - e vergou profundamente os ombros, menos a saudá-la que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abrasar-lhe o rosto. Ela, com um vestido simples e justo de sarja preta, um colarinho direito de homem, um botão de rosa e duas folhas verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval, acabando de desdobrar um pequeno lenço de renda. Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-se embaraçadamente à borda do sofá de repes. E depois de um instante de silêncio, que lhe pareceu profundo, quase solene, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, de um tom de ouro que acariciava."

(Eça de Queiroz - Os Maias)

Olhos de Ressaca?

"Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me, tragar-me."

(Machado de Assis - Dom Casmurro)